Até meu espírito esquecer que habita um corpo e entregar-se ao espaço em volta, ao âmago das perguntas nunca respondidas, de onde as minhas pareciam pequenas e sem importância.

Até meu espírito esquecer que habita um corpo e entregar-se ao espaço em volta, ao âmago das perguntas nunca respondidas, de onde as minhas parecem pequenas e sem importância.

Lara

máscara

Por que tem querer tão complicado? Estica depressa esse emaranhado de intençãorazãoemoção, que de tanto enrolado um dia a gente ainda tropeça. Queria puxar o fio, mas não sei onde começa. Nem se termina. Parece carretel, será que dá pra cortar?

– Por que a gente complica tudo?
– Se fosse fácil demais a gente entediava.

Eu queria tirar a máscara, raspar a casca, despir a fantasia e despedir a alegoria, mostrar-me logo tua de cara e alma nua. Diz a verdade: perde acaso a graça? O divertido é se perder então, nesse labirinto que a gente constrói sem minotauro nem saber. Por quê?
Tentei tirar a máscara, ver lá dentro se era ainda eu que habitava. Mas a máscara não saia.
A máscara era eu, eu era a máscara.

parece até que a gente deu um nó

Lara

precisa?

Talvez eu só precise me apaixonar. Uma paixão e um porre, faz favor. E nessa ordem, que é pra esquecer de me lembrar do que nem nunca soube. Bota na conta que eu pago depois, quando a vergonha chegar, a preguiça passar, a vontade bater ou a pinga descer. O que vier primeiro.  Ou melhor: não pago. Não pago porque é meu de direito, de esquerdo e corpo inteiro. Não pago porque também tenho direito de tomar o caminho errado; e daí se fui avisado? Quem voltava não soube ir nem rir de seu ir, e eu prefiro errar sozinho do que errar no seguir. Eu só queria a certeza de que me perdendo encontre algo que pague a pena. Mas a pressa da promessa me espera, aperto o passo e a certeza fica pra trás. Acho que só preciso de uma paixão e de um porre. Talvez eu precise é de um pare, um pito, um pé no freio, um porto. Um pulo: quem sabe eu não precise mesmo é de porra nenhuma.

Lara

Cruzeiro do Sul

Apagaram-se as luzes. Calou o murmurar da geladeira, o bateder da batadeira, a moça da novela. Lá foi a moça pra janela. Enquanto a pré-ocupação procurava as velas e o telefone pra saber da energia, (“Meu Deus, logo no dia que descobriam a trama da Maria!”) aqui do lado de fora era aconchego. E o sossego de quem sabe que no fim nada passa de reprise.

Eles percebiam agora o que se perdia, o que de dia não se tinha, o que não se queria ou não se podia perceber. A gente às vezes enxerga melhor no escuro. É que se apagaram as luzes, mas ascenderam às estrelas.

E de repente as pessoas descobriram que existem vários silêncios. Aqueles carrancudos, os ansiosos e os de expectativa. O silêncio temeroso e o que beira as atitudes temerárias. O silêncio resignado, o de quem não tem o que dizer. Mas que grande mesmo, é aquele silêncio de quem não sabe como dizer.

Um violão soou tímido de toda aquela responsabilidade que era mostrar com os sons o que as palavras simplesmente não alcançam. Acenderam-se as luzes, ofuscaram as estrelas. Mas ficara aceso meu coração.

Lara

prólogo – parte 3

***

Era manhã, manhã nova. Eu estava numa pequena clareira de folhas laranjas e amareladas  as quais jaziam secas no chão , que ficava por trás e para leste do alojamento das sacerdotisas. É estranho como as coisas mortas podem ainda trazer beleza, como as lembranças que ainda despertam sensações. Os primeiros pássaros começavam a chilrear e era como se todo o mundo estivesse despertando de um sono longo. Comecei a sequência de katis que as meninas faziam todo orvalho. Estava descalça e sentia a terra fria entre meus dedos, e era como se também eu estivesse acordando, porque eu era parte do mundo todo. Meu corpo se movia por impulso, porque meu espírito estava muito ocupado admirando-se com coisas que de repente pareciam tão mais importantes, mesmo sendo tão simples. “Que som belo! Será feito por um pássaro? Olhe que engraçado é o movimento do ar ao receber meus punhos!”. Eu me encontrava num estado de êxtase. Os limites entre eu e o entorno já não eram mais tão nítidos. Eu não diferia tanto dos pássaros cantantes, do rio em eterno movimento ou mesmo das imóveis pedras, porque no fim éramos todos feitos da mesma essência, e eu era tudo e tudo era eu e tudo era uno.

As gotas de orvalho vieram calmas e silenciosas, como confirmação serene de tudo o que eu sentia naquele momento, como uma mãe que diz “é, filha”, ao ver que a mesma fala “au-au” quando identifica um cão. Mas não foi o orvalho e o cheiro de terra úmida que ele desencadeia que me despertaram. Foram palmas.

– Pequena?!

Era uma das sacerdotisas mais velhas, parada em pé a minha frente, que me falava agora. Demorei a responder, dimensionando que ela poderia estar ali à um certo tempo me observando e pensando qual seria o tamanho do castigo que eu levaria por estar fora da cama tão cedo e sozinha na floresta.

– Sim. – Respondi de cabeça baixa, o réu esperando o julgamento.
– Quem lhe ensinou a fazer os katis?
– Ninguém.
– E você aprendeu sozinha?
– Eu…Eu olho o que as meninas mais velhas fazem e tento copiar.

Houve uma mão em meu ombro e um sorriso.

– Venha comigo, pequena.

***

Telejornal

TCHANANAMNANANAMNANAMOláboanoitesuspeitodeenvolvimentonoassassinatodaexamanteambientalistasprotestamcontramudançanasleisdeproteçãodamatanaInglaterraabriuaprimeiraclínicaparacriançaseadolescentesviciadosemjogoseletrônicosenganonocemitérioduasfamíliasdescobriramqueoscorposforamtrocadosalistadecantoresmundiaisvaiganharumnovatoumcadáveresquartejadoedevoradoporumcachorroHolandavenceuaEspanhaefoiclassificadaprafinalpelaprimeiravezdenuncieoproblemadesuacomunidadeemnossacaixapostaloumandeumemailosolbrilhacomforçaemPernambucoefazcalorde30ºtenhaumaboanoiteeatéamanhã.

Agora engole. Assim bem rápido que é pra não dar mesmo tempo de pensar.

Lara

prólogo – parte 2

***

                Olhava com veneração para as meninas mais velhas, prestando exames debaixo do sol escaldante da hora do almoço. Despenderia um dia todo as admirando, se me deixassem. Sonhava com a hora em que seria também eu a aprender As Artes, a realizar aqueles movimentos tão fortes – e ao mesmo tempo tão graciosos!- que as meninas praticavam diariamente ao orvalhar. Imitava-as escondida, temerosa de ser repreendida pelas sacerdotisas ou motivo de piada das outras. Observava até minha cabeça latejar, os movimentos dos punhos e pés, as acrobacias, a maneira de confrontar.

                Havia uma das garotas que se destacava. Tinha a pele branca e os olhos escuros e os cabelos finos e as feições delicadas e sutis, em contraste com o corpo. Mesmo jovem, era a maior mulher que eu já havia visto na vida. Mas não era por isto, ou apenas por isto, que se sobressaía.

                Era de tarde, aquela hora da tarde em que o sol já está cansado e se espreguiçando, e para olhos aguçados, a lua já se ergue fina no céu. Eu estava de pé, atrás de uma pilastra grossa de pedra, e a 300 passos de mim 10 meninas se alternavam lutando. 11, porque eu lutava junto com elas. Eu via os cabelos negros curtos esvoaçando a cada movimento, olhava meus cabelos, que até então sempre foram longos e claros, e pensava que precisava cortá-los. Primeiro, o cumprimento. Nem sempre verdadeiro. Depois, afastava-se. Localizada a presa, dançava em volta dela, e eu imaginava um gato brincando com seu jantar. Sem pressa. Eu ronronava. Eu era o gato. Faça pensarem que você não é perigosa. Isso. Deixava a outra dar o primeiro ataque, se cansar, inútil contra nossa agilidade felina. Agora, a hora do bote. O Rabo do Dragão. Gira, impulsiona com uma perna, chuta com a outra. E eu caia desajeitada na grama ao mesmo tempo em que as duas oponentes de Sofia desmontavam no chão duro, a 300 passos que separavam brincadeira e realidade.

                Sofia era um ídolo para mim e uma promessa de lenda para o resto do exército. Eu tinha, até então, dois objetivos: aprender a lutar e aprender a lutar como Sofia. Eu era a menina que, deslumbrada, imitava a mais velha com adoração. Um dia, peguei escondida a tesoura que minha mãe usava para cortar as peles dos animais que serviriam de almoço. E com ela encostando por baixo da roupa em meu seio ainda inexistente, atravessei os espaços que formavam o corredor de quartos, a sala de convivência, o saguão de entrada. Andei primeiro por grama baixa, aparada por pés e foices, que aos poucos se formava em floresta escassa. Essa continuava até um rio, que era o marco para o início da floresta densa. Debrucei-me sobre meu reflexo e assisti à correnteza carregar os fios dourados os quais julgava já não mais precisar.

***